sábado, 13 de fevereiro de 2010

MITOLOGIA - 1

A FILHA DE DEMÉTER


Quando, num dia de sol vermelho cobrindo as paisagens do mundo, Cronos e Réia tiveram o filho, não puderam imaginar o seu estranho destino. Na hora do parto, as plantas se agitaram, insetos fremiram as antenas, a vegetação perturbou-se, animais enlouqueceram inexplicavelmente, e nas águas dos rios os minerais reluziram, adquirindo extraordinário brilho.
Quando o pai ergue o bebê, anuncia, como que predizendo o futuro:
- Você dividirá com seus irmãos o universo!
E assim quis o tempo.
Zeus tornou-se o senhor dos ares, Poisedon dominou os mares e ao recém-nascido foi reservado o mundo subterrâneo. A partilha foi feita após uma impressionante batalha entre os titãs.
Dominando o mundo subterrâneo, Hades foi também o senhor dos metais, por isso passou a ser adorado e cultuado por muitos poderosos da Terra. O seu coração não era maligno, mas era impiedoso, e o seu julgamento, implacável e temido pelos vivos. Seu nome passou a ser impronunciável pela maioria das pessoas devido ao fabuloso medo que inspirava em todos, inclusive entre os poucos adoradores. Seu reino subterrâneo passou a ser chamado pelo seu próprio nome,  e por alguns foi chamado de Plutão, devido a crença generalizada num suposta riqueza e também como uma das inúmeras tentativas de evitar a sua fúria.
Hades dividiu o seu reino em duas partes subterrâneas: o Érebo, local de purificação das almas, onde instalou o seu maravilhoso tribunal; e o Tártaro, a prisão eterna dos condenados. Os absolvidos no tribunal de Hades, após passarem pelo período de provação em Érebo, eram levados aos Campos Elísios, lugar de bem-aventurança e felicidade, que ficava próximo ao monte Olimpo. As irrecuperáveis, iam para as profundas trevas do Tártaro.
Após a morte, Hermes libertava a alma do corpo e esta enfrentava um pré-julgamento. Depois era levada num rio sinistro pelo terrível barqueiro Caronte (considerado também um carniceiro mercantilista) para o mundo dos mortos. Ele a levava até Radamanto, oficial de Hades que encaminhava a alma, após o julgamento no tribunal presidido pelo Senhor da escuridão e das labaredas, para um dos três níveis do reino.
No Tártaro, Hades, dotado do poder da invisibilidade, inspecionava as almas que afundavam no charco negro pedindo clemência e perdão enquanto eram atormentadas pelos demônios auxiliares do grande senhor, que impunham suplícios. No Érebo, as almas vagavam tateando em busca de luz, banhadas internamente pela esperança de que alcançariam o direito de serem levadas aos Campos Elísios.
As profundezas do reino de Hades eram cortadas pelo rio do esquecimento, no qual todas as almas eram banhadas ao chegarem, para esquecerem do mundo exterior. Entre os vivos corria uma crença: Caronte cobraria pelo transporte das almas e por isso todos eram enterrados com uma moeda dentro da boca.
Nos Campos Elísios as almas se preparavam para o renascimento, mas, todos comiam a semente de romã, que tinha a propriedade de fazer as almas retornarem ao mundo de Hades, caso não se fizessem merecedoras do renascimento ou por uma vontade qualquer do senhor dos infernos.
Para que reinasse absoluto, Hades contava com o auxilio das Erínias (as fúrias), três deusas negras e aladas, que puniam quem fosse cometido pela híbrys. As Harpias atraiam os homens aos vícios. As moiras, que personificavam os destinos impossíveis, ao lado das Harpias e das Erínias abasteciam diariamente o hades com novas almas. Para satisfação de Hades, não houve um só dia que não chegassem levas de almas trazidas pelo horrível barqueiro.
Em algum lugar na escuridão estava localizado o palácio de Hades, e nele, solitariamente sofria o poderoso senhor dos infernos, pois, com tanto poder e tanto domínio sobre as almas e os frutos minerais da terra, não foi capaz de impedir que a solidão invadisse o seu coração e nele se instalasse.
Do seu mundo subterrâneo, observava freqüentemente no mundo da superfície uma linda moça que corria pelos verdes campos e colhia flores de todas as cores. A paixão gradativamente foi ocupando os espaços do seu estranho e atemorizante coração. E com ela viria o seu capricho.
A deusa da semeadura e da colheita, aquela que decide a escassez e a fartura dos trigais, deusa da fertilidade, a mãe da terra, filha de Cronos e de Réia, e irmã de Zeus, Hades e de Poisedon, orgulhosa e feliz, olha a filha Core, que, como faz diariamente, a cada manhã, colhe flores silvestres para enfeitar o templo de adoração em Eleusis, no qual as duas são adoradas pelo povo.
Que felicidade maior pode haver no coração de uma mãe do que ver a sua filha colhendo as flores do campo? E com a felicidade no coração de Demeter, a terra é farta: o verde viceja, os frutos se revigoram, há abundância e a vida verdejante se instala no ventre da terra.
Certa manhã, corre a moça pelo campo, colhendo flores, feliz, sem imaginar que está sendo observada atrás de uma árvore por Hades, que pela primeira vez sobe com a sua carruagem ao mundo da superfície. A carruagem de Hades permanece oculta entre rochas, enquanto ele, audacioso, observa a jovem virgem colhendo as flores. Hades, solitário em seu mundo, se apaixona por alguém da superfície e, mesmo sabendo que a moça dos campos é a sua sobrinha, a filha da colheita, a filha de Deméter, resolve levá-la, e de tocaia, se prepara covardemente para arrastá-la ao seu obscuro mundo.
Core, sem saber do perigo que corre, continua o seu passeio matinal pelos jardins naturais do campo. Se soubesse, talvez invocasse o triste destino de algumas mulheres e fugisse do seu raptor. Após espionar a moça durante toda a manhã, investe contra ela, que, tomada de surpresa, não consegue fugir e se desgarrar do seu carrasco. O poderoso e traiçoeiro deus leva à força a sobrinha para a carruagem e parte em velocidade.
Os cavalos vermelhos como fogo, correm como ventos alucinados. Repentinamente, uma fenda se abre no chão e a carruagem desaparece, tragada pela terra. Os inúteis e desesperados gritos da moça não alteram a decisão injusta de Hades. Ao anoitecer, Deméter, preocupada com a ausência da filha, vai ao campo procurar por ela. Encontra dois camponeses, que relatam ter visto a carruagem em alta velocidade. Pela descrição dos camponeses, logo compreende.
Cai no desespero, pois sabe que somente Hades poderia ser o portador de um gesto tão brutal, de uma violência assim, sem sentido. Mas o sentido está no desejo do deus. Verdes emudecem diante da sua tristeza, e Deméter decide se vingar.
Nada se compara à cólera de uma deusa ferida, e a mãe descarrega a sua mágoa na terra, que até então se mantivera produtiva, em sintonia com a felicidade da deusa. A tristeza e a dor de Deméter logo se verifica nos galhos secos, nas sementes mortas, nas raízes apodrecidas, na seiva que seca, na clorofila que se ausenta. Sua tristeza, e a infinita dor pela perda da filha, se espalham pelo campo, desertificando-o. Nada mais floresce.
A vida vegetal definha. Algas morrem, cogumelos murcham, liquens desaparecem, musgos e arbustos agonizam, todas as flores morrem, azaléias, prímulas, nenhuma inflorescência resiste às lágrimas de Deméter, tudo se vai: girassol, flor-de-lís, dália, margaridas, gardênias...
Não há mais flores no campo! E também todos os aromas da fertilidade terrestre desaparecem em todos os lugares: o manjericão, o alecrim, a hortelã, a sálvia. O campo, sem as cores do acanto, sem a generosidade colorida da érica, sem a delicadeza do crisântemo, se aproxima do espectral deserto.
Povos clamam pelas videiras, pelo retorno do amarelo da flor de arruda, pelo rosa da flor de malva, pelo vermelho da papoula, pelo lilás da violeta, pelo odor do louro, da cânfora, pelas ervas, pelo coentro, pela erva-doce.
A fome procura desesperadamente, pelos campos e hortas secas e abandonadas, a acelga, o couve, o repolho, a chicória, o aipo... Nos mais distantes e diversos lugares da Terra, povos choram a ausência das leguminosas: o grão de bico, o amendoim, as ervilhas, as lentilhas. Prantos pelas faces escorrem.
O mundo sem vagens, sem lírios, sem colmos e sem raízes, é um mundo estéril, vazio, pronto para a morte e para o deserto. Vozes clamam pelo androceu, por orquídeas, pelo narciso, pela polinização, pelos frutos, pela framboesa, pelo figo, pela maçã, pela amora, pela tangerina, pelo damasco.
Não há mais os saltos dos anterozóides após a chuva. Mas é tudo inútil.
Enlouquecida de dor, a pobre mãe sai vagando pelos campos e proíbe o crescimento das plantas, dos trigais, das flores e do mato. A escassez parece definitiva, a fome ameaça todos os mortais. Em todas as moradas erguem-se lamentos de dor. A humanidade sofre com Deméter. A fome enlouquece os homens. As crianças são as primeiras a morrer, as pestes se alastram. O deserto vai pouco a pouco se impondo. A tragédia se abate sobre a natureza. Os prantos dos velhos e dos moços formam uma correnteza de gemidos e ais, que chegam ao monte Olimpo.
Zeus, ao ouvir os gemidos que o vento trouxera, interrompe o seu manjar. Preocupado com a situação dos campos, o sofrimento e a fome dos humanos e a devastação causada pela dor implacável de Deméter, o pai dos deuses tenta por todas as formas acalmar o coração da deusa e implora através de seus mensageiros que ela, embora sofrida, promova o renascimento da vegetação.
Mas Deméter nada ouve. A dor de uma mãe não cabe no mundo. Seus olhos estão encharcados de lágrimas permanentes. Suas lágrimas não se transformam em rios fertilizantes, mas queimam dentro de sua alma violentada.
No auge da aflição, Zeus ordena à Hades que liberte a filha de Deméter, pois a dor e o sofrimento estão estabelecidos e Zeus não quer isso. Se Core não retornar ao mundo da superfície, o deserto tomará conta de toda a terra e a vida desaparecerá. E o deserto da terra simbolizará a paisagem do coração de Deméter. Isso está em desarmonia com a vontade dos deuses.
No inferno, Hades transforma Cora em sua esposa e entre gemidos e dores, ela, ao ser transformada em mulher, recebe do raptor seu novo nome.
- Você agora se chamará Perséfone, e será a rainha do meu reino.
Pede aos demônios que lhe tragam as suas novas vestes.
Core, agora Perséfone, veste um longo vestido vermelho, de um tecido indestrutível, e uma capa dourada, simbolizando, segundo Hades, os metais da terra.
Ela chora inutilmente.
Olha para o lugar tão medonho, para os corredores escuros, para as assombrosas grutas, para o lodaçal e vê, entre martírio e sofrimento, as almas condenadas vagando. Diante dessa paisagem terrível, contempla o seu triste destino.
Hermes chega ao reino de Hades, depois de passar pelo cão chamado Cérbero, guardião da entrada do inferno, e lhe comunica a vontade de Zeus.
Hades, contrariado, pede a Hermes que diga a Zeus que concorda. Realmente Hades cede, mas antes que Perséfone parta, pede-lhe que coma sete sementes de romã. O que a jovem mulher inocentemente faz.
Zeus, no mundo da superfície, diz a Deméter que sua filha retornará, porém se não tiver comido nenhum alimento do mundo dos mortos.
O Coração de Deméter, após tanto tempo de angústias se alastra de esperanças. Um sorriso ameaça brotar em seu rosto. No hades, antes da partida da carruagem, Hades comenta com Perséfone:
- Você é infeliz aqui. Vou devolvê-la para a sua mãe.
Perséfone retorna ao mundo dos vivos.
Quando chega em Eleusis, na carruagem conduzida por Hades, sua mãe corre ao seu encontro. Mas a pobre comera as sementes da romã, por isso o cocheiro sorri triunfante.
Deméter chora sem controle ao abraçar novamente a filha querida. Mas, quando Hades lhe conta sobe as sementes, ela cai no desespero e entre gritos soluça:
- Minha filha! Minha filha! Nunca mais serei feliz! Então, a terra será para sempre estéril, o inverno descerá sobre o solo definitivamente. Deserto, venha! Esta é a minha vontade!
Mas, para Zeus é insuportável a dor da inconsolável Deméter e, habilidoso conciliador, propõe uma alternativa: durante um quarto do ano a filha de Deméter será Perséfone e viverá ao lado de Hades no inferno. O resto do ano, ficará com sua mãe, na terra, e será Core.
Hades, aborrecido, quer discutir, mas aprendeu a não contrariar Zeus, pois é impensável um confronto com seu irmão. E a decisão é acatada.
Nos dias em que a moça está ao lado da mãe, a vegetação floresce, as flores desabrocham e a primavera ressurge. Não falta alimento ao povo e as colheitas são abundantes.
Deméter, como nos velhos tempos, acompanha Core ao campo para a colheita das flores silvestres. A alegria renasce em corações felizes. Depois chega o verão e o Sol abraça majestosamente a verdejante beleza do solo. A vida retorna com toda a sua graciosidade.
No outono, Deméter começa a entristecer, pois se aproxima o tempo da partida da filha amada. As folhas começam a cair ao solo e a natureza se prepara inconformada para receber o inverno agreste.
No inverno, quando a filha retorna para Hades, transformada novamente em Perséfone, Deméter, ressentida, amaldiçoa o solo e nenhuma planta frutifica.
A terra volta a secar, a escassez retorna. Porém os povos resistem com resignação e coragem. Sabem que Perséfone retornará e com ela, a primavera.
 


  RECONTADO POR MARCIANO VASQUES

Imagens: RioTotal

Um comentário:

  1. Hola Marciano:

    En este relato si que he puesto el traductor.Puwes valia la pena no perderme nada.

    Enhorabuena, por la cultura que trasmites en tu Casa Azul Da literatura.

    Un abrazo. Montserrat

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