quinta-feira, 25 de março de 2010

CANTRIZ




CANTRIZ
 
 
 
Fugir quer dizer retornar. O retorno tornou-se peça rara no rol dos investimentos de lapidação humana. Humana aqui é redundância, um pleonasmo, visto que aos animais não foi permitida a condição de auto-lapidação.
Retornar quer dizer ir para dentro, buscar no interior, e é justamente lá que reside a possibilidade do reencontro, condição primária e soberana para o reconforto da alma.
Alma quer dizer: aquilo que que nos incomoda e nos guia. A sua construção depende, no tempo vivido, dos detalhes mais impensáveis como construtores de uma forma de ser, de uma personalidade, um jeito de se direcionar no mundo. As coisas permanecem, mesmo que aparentemente adormecidas, mas permanecem em cada um de nós. Por mais simples e minúsculas que possam ser ou aparentar.
Um paralelepípedo molhado numa tarde chuvosa, um abrigo em uma banca de jornais, um verde limo, um musgo distraído, uma desatenção, um repentino olhar para o céu, coisas e seres que preenchem as nossas mais íntimas necessidades estéticas.
Tudo, desde o prazer absoluto da leitura, foi cultivado ardorosamente e persistentemente pela e para a coisa que em nós é, em oportunidades únicas. Nenhuma pessoa é idêntica, ninguém trilha os mesmos caminhos, e isso compõe o belo e insondável mosaico da vida, o maravilhoso caleidoscópio chamado viver.
Quando consegue se abrigar em si, quando consegue se arraigar, promover o seu retorno, o homem, o ser, realiza a sua mais profunda revolução, a sua mais bela edificação. Nada se compara ao prazer indomável e restaurante de um retorno para si, quando os ouvidos animados estão apurados como aconchegantes conchas de si.
Quanta felicidade é e foi desperdiçada em cada vida pela impossibilidade do retorno, o retorno cíclico, infinitamente necessário e rejuvenecedor, visto que a juventude da alma é o abrigo mais sólido que um homem portador de memória deve consigo carregar.
Tudo vale na promoção do retorno, do voltar-se para si, do silêncio absoluto e da música ancestral e universal que atinge em cheio as solicitações da alma. O grandioso é que ela jamais abandona o ser, mesmo que ele seja forçado pelas circunstâncias a trilhar os caminhos adversos, espinhosos, de intempéries, de procelas violentas, de águas em turbilhões a bater bruscamente em rochedos intransponíveis.
Falo da alma por que ela nos resgata a doçura mais sólida, a ternura que jamais nos abandona. A receita é simples: o ser necessita de amor, o amor oferece dimensões para o crescimento inerente. Só ele devolve ao ser a paz necessária para o aproveitamento do tesouro temporal que o envolve desde a sua chegada ao mundo.
A placenta amorosa que o acompanhou durante anos, os olhos que o velaram, as folhas verdes reluzentes de clorofila, o sol, o cascalho, a areia, tudo sempre esteve e estará na fonte memorialística do ser. E se ele enveredar pela recusa ou pelo abandono ou ainda pelo desprezo das coisas primordiais que sempre estiveram no discurso fundador de si, se perderá.
Abrir um guarda-chuva azul num dia chuvoso, azular-se em cinzas, e entrar num cinema, recorrer à lembrança olfativa de tinta impressa em páginas de gibi lidos, atentar para o burburinho da cidade, para as pessoas simples que trafegam, para as calçadas, para os prédios, transformar o olhar em guerrilheiro amoroso da paisagem ofertada fortalece a caminhada. Óbvio. Mas às vezes o óbvio precisa ser relembrado.
Atualmente a impossibilidade de uma conversa produtora (novamente pleonasmo!) sobre política clama pelo retorno para si, pela busca incansável do retorno. É preciso refúgio, para que a alma seja alimentada, e o maravilhoso barco à deriva da vida encontra um seguro cais.
Que o noticiário político seja naturalmente acompanhado, principalmente para promover a satisfação da alma, para preencher a necessidade vital do ser de polir os olhos, de manter a visão em permanente oficina, mas que ela, a política demolidora que atualmente é exercida pelos homens não tenha o poder, pois mais ínfimo que seja, de destruir o que é mais caro ao ser. O homem será livre-em-si. Essa liberdade o transformará na criança que jamais o abandonou.
E o mistério é justamente viver em juventude, respeitando as imposições da condição biológica, e manter aceso o olhar de criança. Eis o imenso tesouro ao alcance de todos. Se o ser esquece a sua juventude corre o risco de assumir a velhice. Juventude quer dizer:manter o vigor do olhar, sempre direcionado pela rosa-dos-ventos da eterna e inabalável curiosidade do mundo, a infinita abertura da alma para as novidades e as descobertas do mundo. O olhar de criança deverá sempre lambuzar de cores o ser em sua enigmática do retorno na consolidação da alma em juventude.
Assumir a velhice é submeter-se ao aniquilador desconforto de se desprezar a memória, de recusar-se enquanto portador de juventude, de negar-se ao olhar de criança. Três condições básicas para que a felicidade se manifeste: a memória, a juventude, enquanto maravilha-em-si, e a criança, com seu olhar incomparável.
Três conquistas do ser que devem ser acompanhadas pela experiência, pelo amadurecimento da mente, e amadurecimento não quer dizer a negação das três condições, ao contrário, a idéia de se amadurecer está aqui vinculada exatamente no abrir-se para os girassóis da alma. Em plena força-motriz da vida, a cantar a sua generosidade e estar no palco.

MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 8
 

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