quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

ENSABOANDO, ENSABOANDO

—Rospo, que faz aí à beira do lago, na relva deitado?
—Ensaboando, Sapabela, ensaboando.
—Isso é papinho de Cartola*, meu amigo. Como pode estar ensaboando se nada tem além de um livro, fechado, por sinal?
—É para ler depois que ensaboar.
—Não perca mais tempo, Rospo! O ano novo está chegando. Aproveite suas últimas horas do velhão 2011.
—O lindão que se vai. Ora!, como pode comigo assim falar? Eu perder tempo? Vem cá, amiga, vem deitar no capinzal.
—Posso não, companheiro, tenho coisas para fazer.  Que papo é esse de "ensaboar"? Ensaboar lembra bolinhas de sabão lá em Mogi.
—Pois é, Sapabela. Estou dando as últimas repassadas na mente. Precisamos deixá-la bem clara, uma clareira só, limpidez de refletir até alma no lago.
—Já vi que está bem poético hoje. Destronou as palavras e as jogou no inefável picadeiro de cores que é a vida em poesia. Afinal. o que é essa coisa de "ensaboar"? Sabe que se é coisa boa, já estou nela.
—Então mande ver, Sapabela. Ensaboar a mente é lavar e expulsar com as águas os entulhos que porventura tenham resistido no porão da mente. Sabe que somos demasiadamente sapos humanos.
—Sei, uma faisquinha de ciúmes de alguém, uma invejinha que fica martelando, um remorso por uma indecisão, uma má água pela perda que se perdeu de bobeira, uma falta de iniciativa que atrapalhou tudo, uma lasca de medo descabido de uma nova vida, um grito que num nervosismo se deu, uma piada boba, o fato de ter rido de piadas que fincam estereótipos, uma gargalhada que ficou presa na garganta só por que estava em público, uma farpa no ambiente de serviço que você não soube contornar, embora às vezes seja melhor explodir de vez, uma culpa exagerada por ter tomado um sorvete...
—Eu tomo um pote inteiro.
—Uma tentação de mentir, um gibi de leitura adiada, um filme que não assistiu e se arrepende...
—"Longe Dela!"
—Um compromisso que não realizou por causa de chuva... A bebida gelada ou a taça do vinho de uva com o amigo, que você não abriu uma fenda no tempo...
—Assisti duas vezes, em DVD, ao filme "Desejo e Reparação"
—Fique quieto! Mas... esse filme! Como eu chorei, Rospo!
—Eu também. Alguma coisa temos em comum.
—Alguma coisa? Pirou, é? Somos tão parecidos.
—Com um detalhe.
—Detalhe de sapo não se relega nem se despreza. Diga.
—Você é muito melhor do que eu.
—Não exagere, amigo. Você é melhor do que eu.
—Sapabela, quero dizer algo. Sou pura gratidão por tanto que durante o ano me transmitiu em nossas conversas, tão aquecidas, tão...
—Rospo! A minha lista não terminou!
—Ela é infindável.
—De certa forma, tem razão. Algumas coisas sei que cumpri e me sinto tão feliz. Apertei forte a mão de cada amiga, abracei forte, meu sorriso pode até ser pendurado num varal encantado, pois sempre sorri de forma espontaneamente sincera. Porém, naturalmente, falhei em algumas coisas. Talvez eu precise mesmo ensaboar.
—É isso que importa, Sapabela. Tem sapos que se perdem nos labirintos de promessas, tipo, emagrecer, fazer regime, parar de fumar. Eu fico assim, perambulando nesse tal "ensaboar", prefiro mesmo, amiga, rever, repassar as mancadas, e foram muitas: Não pude ir ao lançamento do livro de um amigo, não pude ir ao teatro do CEU PARQUE SÃO CARLOS, não pude fazer algumas coisas, e agora estou endividado, são débitos que preciso efetuar em 2012. Fico feliz que tenha decidido também repassar a sua travessia.
—Travessia?
—Claro, o ano é a mais emocionante travessia na vida de qualquer sapo.
—Os sapos estão trabalhando! Vivem uma rotina desgastante, extenuante. Como podem perceber essa travessia?
—Não importam as dificuldades, querida. Tem algo  que ninguém jamais tira de você, que é a sua presença ética no mundo, a sua estética da alma. Falando em estética, imagino como estará mais linda ainda na passagem. Usará um vestidinho branco?
—Sei não, Rospo. Considero bonitas essas tradições, mas como não sou supersticiosa, talvez use um azul, ou até rosa de água. Veremos depois, mas agora, vou começar a "ensaboar" a mente. Assim não preciso me emaranhar em promessas. Com a mente tremeluzindo serei eu uma radiante promessa.
—Sapabela, a relva está esperando por você.
—Só uns quinze minutos, Rospo. Deitarei sim, olharei para o céu lindo, e em silêncio ensaboarei a minha mente.
—"Por isso é única!"



*Compositor brasileiro.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2011  — 750
Marciano Vasques

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