NO CENTRO DO RODAMOINHO UNIVERSAL
—Quando
se sabe que vai morrer, o sapo se liga às coisas que realmente
importam, que são as imensas, aquelas que estão na simplicidade da
vida, e nas coisas boas, como doce caseiro de abóbora e amizade
sincera, de risos e gargalhadas.
—Rospo,
estou estremecendo. Que papo é esse de “se sabe que vai
morrer”?...
—Fique
aflita não meu bem. O que estou a dizer é exatamente isso. A vida,
seja de quem for, necessita e clama por uma mitologia, que é “a
que faz falta”...
—Continue.
—Com
essa mitologia, que é feita de mecanismos de defesa interior...
—Sei,
a palavra “Aqui”...
—Palavra
curandeira de expressiva força...
—Prossiga.
Quero chegar no “morrer”.
—Pois
bem, é sabedoria compreender a finitude múltipla da vida.
—Vamos
com calma, Rospo. Estou assimilando. Aliás, está vendo aquela
padaria?
—Sim,
estou, durante anos tive um sonho de que o dia começaria mais feliz
se eu pudesse estar numa padaria tomando um chocolate expresso...
—Então,
Rospo, eu descobri, perplexa, de que assimilo melhor as ideias com um
licor de anis...
—Yupiiii!
—Está
bem, está bem, sem escândalo, sem alaridos... Vamos lá. Já que o
convite foi lançado como naipe à mesa, lá você poderá continuar
esse seu papo de lunedi.
—Exibidinha.
—Pronto,
amigo. Pode prosseguir.
—Nessa
mitologia pessoal, que depende e interessa a cada sapo, de forma
específica, pode, além dos mecanismos de defesa interior...
—Um
livro, uma janela arejada, uma canção da mocidade...
—Nem
se usa mais essa palavra, Sapabela: mocidade... Aliás, diz-se que em
algumas metrópoles usa-se mais o seu antônimo: bandidagem.
—Não
seja cruel, Rospo.
—Estou
brincando. É quando era menino brincava muito de mocinho e bandido.
Era muito bom, cada um se escondendo com aquelas armas de forquilha,
eu, sempre atrás de um pé de poejo ou de hortelã, ficava de
tocaia...
—Realmente,
sapinho entre as folhagens teve uma infância e tanto... Mas, fale
sobre essa tal mitologia pessoal.
—Que
licor de anis gostoso!
—Sempre
é. Mas, vá em frente. Vá fundo, Rospo.
—Não
exagere, Sapabela.
—Você
só me faz rir, Rospo! Por isso sua amizade brilha em meu coração.
—Pois
bem, um das pedras preciosas dessa tal mitologia é ter a consciência
de que se vai morrer...
—Entendi,
ao dizer, “quando se sabe que vai morrer”, está se referindo à
consciência da finitude da vida, de sua condição de efêmera.
—Vamos
para outra “ótica”?
—Estou
lá, mande dizer.
—A
finitude da vida é apenas um conceito, pois pensamos em categorias
conceituais o tempo todo.
—Quando
falei “vai fundo”, não quis dizer para exagerar, Rospo. Deixe de
lado esses termos acadêmicos e da Filosofia, e pelo que entendi,
está dizendo que “a finitude da vida” é relativa?
—Lembro-me
de quando chegou à periferia essa expressão : “tudo é
relativo”...
—Sei,
essa expressão é filha da PUC.
—Posso
continuar?
—Claro,
Rospo! Reparou que aqui tem um chocolate expresso?
—É
o “Pós drinque” para o licor de anis.
—?
—É,
quando é comida, é sobremesa, quando é bebida, é “ Pós
drinque”...
—Está
certo. Então, prossiga. Vai... na sua.
—Pensei
que iria falar diferente.
—Iria,
mas fiquei desconcertada com esse olhar.
—Falando
em olhar guloso, adoro a arte...
—Rospo,
atenha-se! E prossiga. Ninguém falou em gulodice. E já nem consigo
parar de rir.
—Pois
bem: finitude da vida é apenas um conceito, pois ela, a vida,
prossegue nas coisas boas que se planta e nas ondas mentais que
atravessam os casarões, os vilarejos numa polinização espetacular,
de riqueza infinita. Sempre que você expressa um sentimento ou um
pensamento poético, por exemplo, ele se irmana em feixes invisíveis
a algum outro poeta, em algum canto do mundo.
—Acredita
mesmo nisso, Rospo?
—Naturalmente,
então, a vida é infinita. Ela apenas finge que termina, pois estará
sempre nas coisas imensas que movem os corações e as almas na
multidão.
—Nesse
sentido, Rospo, saber que se vai morrer é ter a consciência de que
a vida sempre pede passagem... E é infinita, e...
—Prossiga.
—Foi
uma pausa para a emoção.
—Pois?
—Ter
a consciência de se que vai morrer é participar de algo imenso, é
estar sintonizado com a força mais expressiva da vida, é estar no
centro do ciclone universal. Na verdade, é abrir o coração para
viver intensamente, é participar da vida com felicidade...
—Sim,
estar no centro do turbilhão. Ser a profusão de luzes no torvelinho
do universo... —Por isso amo a nossa amizade, Rospo: o melhor do
amigo cada um de nós leva na conversa, que transportamos conosco, em
nossa mochila dos tesouros insondáveis. Moço! Traga dois chocolates
expressos...
—Yupiiii!
HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 796
Marciano Vasques