O MENINO E O FANTASMA
(Originalmente em
Italiano, como o título: IL BAMBINO E IL FANTASMA)
O velho cigano, quando
menino, queria sempre ler “O Homem Mascarado”, ou ver na TV um
filme policial, sempre depois da meia-noite, quando se supõe que o
silêncio impera na Floresta Negra.
Na noite de 26 de
agosto de 1964, lia o gibi, quando sentiu um estranho rumor.
Levantou-se da cama e andou em direção à janela. O governador era
o pirata.
Do quintal veio
primeiramente um assovio, depois um vento fraco e frágil, como
fibras suaves numa febre cortante, junto com uma luz semelhante a um
semáforo numa distante noite, plena de escuridão.
Junto ao seu espanto,
veio também um grande barulho, porém não ensurdecedor.
O menino, como medo no
pequeno coração, andou até a pia e a bebeu um copo com água,
porém não chamou ninguém.
No jardim parecia tudo
escuro e tranquilo. Só o imperceptível ruído das minúsculas asas
noturnas.
Passarinhos dormiam no
alto negro das árvores, e as formas embaraçadas dos vultos
fantasmagóricos das galinhas nos galhos da enorme jaqueira, eram só
fiapos de visão nas frestas da veneziana.
A luz se escondia com o
espetáculo de seu rosto então ausente: o espetáculo branco,
entrecortado pela seda rósea da cortina transparente da janela.
Pleno de magia, porém,
sujo e lambuzado de medo com cada tipo de pensamento e com o olhar
diante da vidraça, colocou a sua pequenina mão branca sobre o
velho peitoril com azulejos azuis iguais aos que circundavam o
pequeno oratório, formando um quadrilátero tortuoso.
Decidiu esclarecer tudo!
Decidiu esclarecer tudo!
A avó e o avô
dormiam. Nunca pensou nas idades da avó Conceição e do avô Pedro.
Apenas se limitou a olhar distraidamente os cabelos brancos e as mãos
alvas com excesso de manchas, e no rosto outrora feminino, também as
longas e labirínticas rugas, assim como o eterno chapéu cinza que
cobria os cabelos brancos do avô.
Às vezes brincava com
os pequenos caracóis enquanto por ele passava lentamente o velho
Pedro, sempre relacionado com um doce de amendoim, ou o cheiro forte
do fumo e as nódoas de fumaça que embeveciam as manhãs.
Também as estrelas que
se dissolviam na distância e na franja da lua, como veludo prateado,
sempre a fingir distância e indiferença.
O espírito do
espantalho, com a sua espada de espiga de milho, olhos de neve e
coração de palha, era uma sombra que parecia alegre como um palhaço
com pequenos olhos de vaga-lume, nariz de morango e bochechas plenas
de bolinhas vermelhas.
Numa das árvores do
quintal, um morcego dormia, porém uma coruja mantinha bem abertos os
olhos.
Próximo ao peitoril da
janela, uma vassoura, um abridor de latas e outras coisas: talvez um
sapo, uma rã, um rato, um pequeno lagarto, ou ainda, uma lesma?
Lesmas, quando subiam
pela parede úmida, se misturavam ao cheiro de tijolo, que a chuva
depositava no ar, e deixavam rastros brilhantes que refletiam
fragmentos dispersos de luar.
O menino quis
ajoelhar-se e rezar, temeroso pelas imagens assustadoras de um enorme
Cristo de bronze pregado numa cruz de madeira que vira certo
entardecer numa sala escurecida da igreja, e ao mesmo tempo encantado
pela visão cintilante de relâmpagos numa insônia.
Ajoelhou-se.
A reza foi trêmula e
veloz. Voltou ao leito morno e acolhedor.
Que continuasse o
universo se expandindo!, que prosseguisse a vida latejando nas gotas
das pétalas orvalhadas das parcas rosas que a pobre mãe plantara no
jardim frequentemente desprezado. Nenhum lugar lhe traria naquele
momento mais segurança e conforto que a velha cama de madeira com o
colchão levemente cheirando urina. Porém, antes de retornar ao
leito, caminhou em direção à tênue luz da sala, e se recordou que
tinha a marca da proteção do “Espírito que anda”, que veio
como brinde num gibi comprado pelo velho Pedro num dia de chuva fina
numa banca da estação ferroviária do Brás.
Depois, ainda antes de
se deitar, deu uma rápida esguichada de olhar no cão, que dormia
com a cauda sem vontade de festejar, e matou um pernilongo que voava
como um helicóptero diante do espelho roto.
Retornou à cama já
sabendo que tudo não passara de um sonho. Que os ruídos que vinham
de fora não passavam de estilhaços da mescla de imaginação,
insônia e realidade, que fortaleciam sua mente infantil.
Da janela, o “Homem
Mascarado” sorria como uma fantasma.
MV
Nenhum comentário:
Postar um comentário