sábado, 18 de agosto de 2012

COANDO O CAFÉ





COANDO O CAFÉ


—Rospo, que saudades!
—Eu também, querida amiga.
—Que tal uma conversinha?
—Vou coar o café.
—Que papo é esse, Rospo? Nossas conversas sempre foram regadas com sorvete, Sempre deu picolé na cabeça. E foram conversas com versos. Não entendi esse negócio de “coar o café”. Aliás, é bom lembrar: você nem toma café.
—“Coar o café” é uma expressão que significa: preparar os grãos...
—Que grãos?
—Os grãos da conversa.
—É uma expressão antiga?
—Não sei, nunca ouvi.
—Além de não tomar café, também não toma jeito, meu amigo.
—“Coar o café” me traz de volta na memória os dias avarandados...Quando as conversas se entrelaçavam quintais afora, e o vilarejo se unificava num saber que transbordava de delícias e aromas. Uma conversa ficava marcado pelas gostosuras que a generosidade da amizade ofertava.
—Rospo, o tempo mudou. A conversa nem mais existe nas grandes metrópoles... E quase nem tem doces caseiros...
—Já viveu na cidade grande, Sapabela?
—Está mais maluco, Rospo? Nós vivemos na cidade grande. Será que não reparou?
—O importante é extrair as belezas da cidade grande e usufruir ou introjetar o que ela de bom e de abrigo nos oferece quando nos acolhe, mas, acredite, minha amiga, jamais permiti que a cidade grande me invadisse com algumas de suas vontades contemporâneas, como a velocidade. Não me sinto tão necessitado de velocidade...
—Mas vive correndo contra o tempo, e cumprindo horário...
—Um sapo só é feliz quando viver intensamente o seu tempo, sem correr contra...O tempo não é um adversário do sapo...
—Mas o sapo pode transformá-lo num adversário, basta desperdiçá-lo. O tempo não perdoa o desperdício. Veja a nossa sociedade aqui no brejo. É a sociedade do desperdício, e essa prática se estende ao tempo. Horas diante da tela da tevê é uma forma de desperdício...
—Assistir a um filme ao lado da amada sapa, isso não é um desperdício...
—Não, isso é um investimento. Desperdício é permanecer horas sem critério...
—Horas criteriosas não podem se transformar num rigor desnecessário?
—Rospo, o rigor das horas criteriosas é o rigor amoroso. Não há nenhuma relação de coronel entre o sapo e o tempo quando o rigor é amoroso. Rigor consigo mesmo, ao selecionar os benefícios do tempo bem assimilado e vivido é o maior bem que o sapo a si mesmo promove.
—Sapabela, tem sapo que costuma dizer que não tem tempo para conversa...
—Esse sapo necessita de harmonia. Harmonização. Assim que ele compreender as suas próprias necessidades urgentes, estará preparado para o rigor amoroso consigo mesmo...
—A época está solta, os valores estilhaçados... Tudo parece perder o sentido... A ética encabulou-se na Política, na rota do poder pelo poder... Tornou-se miúda, aos poucos evaporou-se. Tudo parece piorar, Sapabela...
—É só impressão, Rospo. Sapos edificam neste exato momento a consciência da necessidade do rigor amoroso para consigo, e esse é o patamar, o parâmetro essencial para uma sociedade melhor...E pode acreditar, você está certo. Tudo pode começar no gesto de coar o café...
—Lembro-me de quando era um sapinho. Meu pai discutindo sempre com algum amigo para ver quem pagava a passagem do ônibus. Havia um aroma, um fluído de gentileza no ar, e também, não havia uma só conversa em que o convite para o cafezinho não existisse, e a briga “entre aspas” para quem iria pagar o próprio. Amizade era repleta de cortesias...
—As mudanças sociais geradas pela insensatez dos poderes econômicos, que esmagam os sapos e as alegrias, estão a demolir as coisas essenciais, que sempre vigoraram na simplicidade... Pois é nela que o que de fato importa sobrevive e ganha vulto...
—Pois é, assim é.
—E assim se torna mais urgente coar o café, preparar os grãos da conversa, que , quem sabe, voltará a ser estendida entre os varais dos vilarejos...
—Rigor amoroso às vezes solicita o abandono por algumas horas do controle remoto, por exemplo.
—Horas criteriosas, viva cada uma delas. E a nossa poderá começar agora, num sorvete. Afinal hoje é sábado.
—É mais do que sábado, Sapabela. É dia de Bienal.
—Aceito. Que hora nos encontraremos no metrô?
—Yupiiii!
—Nossa, Rospo! Que alegria!
—Adoro coar o café.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 812

Marciano Vasques


Um comentário:

  1. Passando para deixar um abraço fraternal e desejando um fim de semana com harmonia.
    Nicinha

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