A MÚSICA ME TOCOU
Dois amigos na calçada
que leva à padaria Rubi.
—Lá está ela, com
seus vitrais vermelhos. Que linda! Que bom que aceitou o meu convite,
amiga...
—Rospo, para certas
coisas, não sou sapa de segunda opção. Nesse caso, de um convite
seu, não existe a segunda opção. É aceitar ou aceitar. Além do
mais, a manhã nasceu domingueira...Com gosto de parlenda de acordar
crianças...
—Acordo a menina da
família com a voz bem suave ao seu ouvido cantarolando baixinho:
“Hoje é Domingo pede cachimbo/pede alegria/pede sorvete...”
—Você faz isso?
—Sempre, Rospo, com a
minha sobrinha faço isso diariamente. Criança se acorda com voz
suave, deslizando como manteiga sonora...sempre com uma cantiga, uma
parlenda, um trava-língua, uma canção, um poema... Assim os seus
ouvidos no futuro estarão na resistência cultural do mundo, na
infinita ciranda...
—Que coisa imensa,
Sapabela! Você é tão feliz e me deixa tão completo na alegria que
até parece um samba.
—Mas sou uma sapa, e
uma sapa Sapabela. Você gosta de samba, não é?
—Considero a última
bandeira fincada na resistência da criatividade musical popular.
—Sim, o samba é a
trincheira da alegria harmoniosa, considero também o último momento
da alegria autêntica do povo brejeiro... Essa coisa
lusitanaafricanaamericana é por demais de boa... Mas, pode me
explicar como é isso de gostar de Mozart, de Tonico e Tinoco, de
Rock in Roll, pois sei que você gosta demais de Rock... e ainda de
bolero... Como é esse sincretismo musical em sua alma, Rospo?
—Creio que essa
diversidade em meu peito é fácil de ser explicada. A música, que
originalmente tem o sentido de elevar o espírito do sapo, ela se
harmoniza em diversas formas... Que sempre têm um ponto comum, que é
a alegria... A música, como a poesia, a filosofia, a arte... existe
para alegrar o espírito...E o samba faz isso muito bem...Sempre
fez...
—Rock é energia... é
vida em sua intensidade...
—Você me
retangularizou, me pôs em um quarteto... Música Clássica, Samba,
Rock e Bolero, tudo com maiúscula, viu? E veja só, quando se diz
bolero se diz guarânia, se diz balada, se diz...
—Soube que certa vez
esteve no sul e ficou emocionado vendo um pai cantando uma guarânia
com seu filho...
—Quantas histórias,
não é? Veja, Sapabela, estamos chegando. Cá está ela, com todo o
seu esplendor. Veja como os raios matinais do sol refletem em seus
vitrais como se estivéssemos diante de um caleidoscópio
domingueiro...
—Vamos entrar, Rospo,
e quero que saiba que também adoro o Samba, o Rock, o Bolero e a
música clássica. Aliás, faz tempo não vamos assistir a um
concerto... Logo você, que aprecia tanto concertos...
—Concertos e
consertos, querida... Precisamos de uma reforma, um conserto no
pensamento contemporâneo, que está meio embaraçado... antes, para
dar um exemplo, estudar era o grande lance... o grande investimento
da petizada, o grande triunfo, agora, em muitos casos, aula vaga é o
mais esperado...
—Entramos, cá
estamos na nossa padaria Rubi. Pra combinar com a cor dela,
poderíamos pedir um licor de cereja...
—Sapabela, tem tantas
formas de se dizer “Eu te amo!”...
—Verdade, as palavras
são apenas um recurso... Mas, por que me disse isso?
—Nada, apenas pensei
em algo... Gosto de estar com você nas manhãs de domingo...
—Sabe, Rospo: bolero,
sentir o rosto do outro na dança, estar fadado a ser do fado; Rock,
essa energia encantadora que os cabeludos trouxeram ao mundo, energia
de esmagar tristeza, de soterrar mágoas; música clássica, esse
enlevo, essa força “espiritual” ; e samba, essa alegria
colorida: tudo isso, com licor de cereja, ou de anis, e amizade,
caminhada na calçada... Como é feliz ser uma sapa, Rospo! Agradeço
diariamente pela semente que germinou e trouxe-me sapinha ao mundo.
Viva! Viva mil vezes! E tem algo mais, Rospo: Você falou da alegria,
que é o elo de ligação entre ritmos diversos... Mas eu digo algo
que acontece comigo. A música está no ar, ao ser tocada está no
ar, mas... a música precisa me tocar, tocar em mim. No exato momento
em que a música me tocou, então ela cumpriu a sua felicidade, e a
sua felicidade é devolver a alegria aos ouvidos do coração.
HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 817
Marciano Vasques
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