domingo, 2 de setembro de 2012

A MÚSICA ME TOCOU


A MÚSICA ME TOCOU



Dois amigos na calçada que leva à padaria Rubi.
—Lá está ela, com seus vitrais vermelhos. Que linda! Que bom que aceitou o meu convite, amiga...
—Rospo, para certas coisas, não sou sapa de segunda opção. Nesse caso, de um convite seu, não existe a segunda opção. É aceitar ou aceitar. Além do mais, a manhã nasceu domingueira...Com gosto de parlenda de acordar crianças...
—Que coisa linda!
—Acordo a menina da família com a voz bem suave ao seu ouvido cantarolando baixinho: “Hoje é Domingo pede cachimbo/pede alegria/pede sorvete...”
—Você faz isso?
—Sempre, Rospo, com a minha sobrinha faço isso diariamente. Criança se acorda com voz suave, deslizando como manteiga sonora...sempre com uma cantiga, uma parlenda, um trava-língua, uma canção, um poema... Assim os seus ouvidos no futuro estarão na resistência cultural do mundo, na infinita ciranda...
—Que coisa imensa, Sapabela! Você é tão feliz e me deixa tão completo na alegria que até parece um samba.
—Mas sou uma sapa, e uma sapa Sapabela. Você gosta de samba, não é?
—Considero a última bandeira fincada na resistência da criatividade musical popular.
—Sim, o samba é a trincheira da alegria harmoniosa, considero também o último momento da alegria autêntica do povo brejeiro... Essa coisa lusitanaafricanaamericana é por demais de boa... Mas, pode me explicar como é isso de gostar de Mozart, de Tonico e Tinoco, de Rock in Roll, pois sei que você gosta demais de Rock... e ainda de bolero... Como é esse sincretismo musical em sua alma, Rospo?
—Creio que essa diversidade em meu peito é fácil de ser explicada. A música, que originalmente tem o sentido de elevar o espírito do sapo, ela se harmoniza em diversas formas... Que sempre têm um ponto comum, que é a alegria... A música, como a poesia, a filosofia, a arte... existe para alegrar o espírito...E o samba faz isso muito bem...Sempre fez...
—Rock é energia... é vida em sua intensidade...
—Você me retangularizou, me pôs em um quarteto... Música Clássica, Samba, Rock e Bolero, tudo com maiúscula, viu? E veja só, quando se diz bolero se diz guarânia, se diz balada, se diz...
—Soube que certa vez esteve no sul e ficou emocionado vendo um pai cantando uma guarânia com seu filho...
—Quantas histórias, não é? Veja, Sapabela, estamos chegando. Cá está ela, com todo o seu esplendor. Veja como os raios matinais do sol refletem em seus vitrais como se estivéssemos diante de um caleidoscópio domingueiro...
—Vamos entrar, Rospo, e quero que saiba que também adoro o Samba, o Rock, o Bolero e a música clássica. Aliás, faz tempo não vamos assistir a um concerto... Logo você, que aprecia tanto concertos...
—Concertos e consertos, querida... Precisamos de uma reforma, um conserto no pensamento contemporâneo, que está meio embaraçado... antes, para dar um exemplo, estudar era o grande lance... o grande investimento da petizada, o grande triunfo, agora, em muitos casos, aula vaga é o mais esperado...
—Entramos, cá estamos na nossa padaria Rubi. Pra combinar com a cor dela, poderíamos pedir um licor de cereja...
—Sapabela, tem tantas formas de se dizer “Eu te amo!”...
—Verdade, as palavras são apenas um recurso... Mas, por que me disse isso?
—Nada, apenas pensei em algo... Gosto de estar com você nas manhãs de domingo...
—Sabe, Rospo: bolero, sentir o rosto do outro na dança, estar fadado a ser do fado; Rock, essa energia encantadora que os cabeludos trouxeram ao mundo, energia de esmagar tristeza, de soterrar mágoas; música clássica, esse enlevo, essa força “espiritual” ; e samba, essa alegria colorida: tudo isso, com licor de cereja, ou de anis, e amizade, caminhada na calçada... Como é feliz ser uma sapa, Rospo! Agradeço diariamente pela semente que germinou e trouxe-me sapinha ao mundo. Viva! Viva mil vezes! E tem algo mais, Rospo: Você falou da alegria, que é o elo de ligação entre ritmos diversos... Mas eu digo algo que acontece comigo. A música está no ar, ao ser tocada está no ar, mas... a música precisa me tocar, tocar em mim. No exato momento em que a música me tocou, então ela cumpriu a sua felicidade, e a sua felicidade é devolver a alegria aos ouvidos do coração.

HISTÓRIAS DO ROSPO 2012    — 817
Marciano Vasques

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pesquisar neste blog