terça-feira, 18 de dezembro de 2012

SOBRE A REVOLUÇÃO DIGITAL

—Sapabela!
—Rospo! Está bem?
—Estou.
—Meu caro, você é muito transparente. Só é verde na aparência, mas por você passam os raios solares e as luzes da alegria, e também...
—Sapabela, tudo bem, mas não precisa exagerar. Sou apenas um sapo...

—Jamais diga isso novamente! Um sapo nunca é igual ao outro. Essa é fonte da grande mãe do desejo da sociedade contemporânea, o capitalismo: que os sapos sejam iguais, uniformizados, padronizados no pensamento cultural, e nisso, bem sabe, a revolução digital muito ajudará... O futuro? Digitalizado será do jeito que o capital quer... sapos em produção, isto é, sapos com pensamentos padronizados, e pior ainda, a tragédia maior, o grande desastre.
—Nossa, Sapabela! Você nunca falou assim! A que se refere? É contra a revolução digital? A maior revolução de todos os tempos.
—Não, amigo. Não sou contra, mas ela precisa de investimento urgente, investimento dos guardiões...
—Do que fala, minha querida? Já tem zil milhões de $$$$$$$$$$$$$$ que são investidos....
—Não se trata disso, querido. São investimentos daqueles que precisam unir suas forças para aperfeiçoar essa revolução digital, inserindo nela os valores do pensamento humanista do sapo.
—Eu que ando sofrendo algumas decepações, fico feliz por ouvi-la, mas jogue a rede ao mar, vamos ampliar esse argumento, que estou curioso.
—É decepções que se diz, Rospo.
—No meu caso é decepações sim, alma fica decepada... mas, prossiga.
—Veja, só pra entender, o que vai acontecer com o livro. Ele que foi o abrigo da cultura, da transmissão do pensamento e da riqueza da humanidade do sapo, ele sofrerá, ao se tornar digital e abandonar o seu formato tradicional de séculos e séculos de papel...
—Caso isso ocorra de fato...
—Veja só, observe a tragédia...
—Não sei a que se refere... Tão angustiada, me parece....
—O livro digital traz em si a promessa de converter a leitura, o ato de ler, a imensidão de se entrar no mundo de um livro, pois o livro, cada um, traz em si um mundo, então o livro do futuro como se anuncia o grande capital, que é a força motriz invisível, sempre foi, então...
—Sapabela, estou tentando acompanhá-la em meu restaurante interior.
—Restaurante?
—Sim, essa significativa palavra, que se diz sobre restaurar, precisamos dela em nosso interior, pois é  nesse nosso universo particular que podemos restaurar nossas forças. Nesse restaurante nem o presente pode ser mal passado...
—Nossa, Rospo! Mas, prosseguindo: a promessa do livro digital é que a leitura, essa maravilhosa invenção da alma, deixe de ser um ato solitário, a leitura, que é solitária desde sempre, agora corre o risco de ser coletiva, isso representará uma tragédia, pois só na leitura solitária se aduba, se desenvolve e floresce a imaginação, esse sublime cultivo, que laçando o jovem sapinho, representará o tesouro de sua vida.
—Mais, Sapabela, por favor.
—Com o fim da solidão necessária, da "exigência do livro" sobre a qual alguém já falou, como o estabelecimento da leitura coletiva, quando o livro será portador de penduricalhos luminosos, adornos desnecessários, com imagens e até sonoridade, com sons, com links e janelas zil, que criam uma atmosfera de autoria coletiva de tal forma que o leitor será autor e tantos autores terá o livro, que em vez de ser o objeto de culto, de devoção, de amor, de zelo, de culto tal como falou Borges em sua infinita cegueira luminosa, esse livro, outrora o mais rico e extraordinário tesouro da humanidade do sapo seguirá sua tendência de ser transformado em brinquedo...
—Sapabela!
—Sei, Rospo, estou acostumada a ir contra a corrente, pois assim me tornei quando menina, e por isso sempre naveguei contrariando poderes...
—O livro de papel é pesado, dizem... E pode acumular mofo...
—Acumular mofo é descaso, e não acredito que um livro seja pesado... Clarice quando menina, ao ter em suas mãos o primeiro livro de Lobato, em nenhum momento o considerou pesado, e tem mais...
—Tem?
—A futura geração deixará de sentir o prazer táctil de carregar consigo um objeto tão aconchegante que é o livro, esse cúmplice, essa beleza de papel, que respeitosamente guarda o momento de ser lido, quando então abrirá o mundo que preserva, e talvez venha o leitor a carregar um aparelhinho leve, que poderá acondicionar livros... Livros com várias intervenções, e não há de fato inocência num livro que transmite para o adulto leitor sons e excesso de imagens, e outros adornos e outros acessórios...
—Tem receio não de ser chamada de conservadora? Muitos querem o livro digital no lugar do velho de papel.
—Rospo! Estou sem dicionário!
—Para que, linda?
—Eu não sei essa palavra, Rospo: receio.
—Se tivesse um tablete o Google traduziria para você.
—Está bem, está bem, mas eu disse que não há inocência....
—Isso, desate, queira esmiuçar, destrinche, por favor.
—Como disse, no início da conversa...
—Conversa? Isso é um curso de Mestrado...
—Não exagere, meu querido. Mas como eu disse, jamais serei contra a revolução digital, todavia ela necessita de aparos, de reparos, de gentilezas que só o pensamento humanista poderá oferecer, como um resguardo, um enclausurado  tesouro repleto de asas na liberdade da alma....
—Então, mande!
—O livro digital, ora veja, ao destruir...
—Que palavra forte!
—Pode usar algum sinônimo, se quiser, e até um eufemismo... Mas, vamos em frente.
—Sim, é sempre a única saída.
—O livro digital é sim bem-vindo e deveria ser uma alternativa, como é o DVD, que leva o cinema para casa, entre aspas, mas jamais destruirá o cinema, por causa da alma, que é a mesma do livro.
—Mas o cinema é uma arte coletiva, ele é coletivo!
—Quem disse? O cinema é solitário, como o livro. Você pode ir com a sua namorada ou um monte de amigos, mas experimente ficar conversando na hora da tela. Pois bem, o livro digital, ao destruir a imaginação, que é esse o imenso objetivo oculto do grande sistema, estará contribuindo para o largo sonho almejado dos poderosos que controlam a "eficácia" do sistema capitalista.
—Fale melhor isso, Sapabela.
—Ora, Rospo! O que mais o sistema contemporâneo pode almejar do que a produção de sapos em série? Ao se destruir a imaginação, o sapo perde a grande batalha, e então estaremos diante da tragédia anunciada, que é a secura da padronização, da uniformização do pensamento. Sapo sem imaginação é como sapo sem memória, perde a sua própria identidade, e se deixa adaptar como um membro de manada...
—Entendi!
—É ligeiro.
—Claro! Sou amigo da Sapa.
—Pois bem, que venha o livro digital, já que é inevitável, porém não com tantos recursos inventados, pois necessidade não se fabrica, e os guardiões do tesouro maior, que é a imaginação, precisam mesmo contemplar a necessidade da união. Tudo no mundo requer aperfeiçoamento... Menos a natureza... Quer dizer, as sementes da melancia nunca me incomodaram...
—Mas um caroço menor no abacate até que seria um charme.
—Pare com isso, seu bobo. Então, consegui expôr o meu pensamento?
—Sim, de fato, você não é contra a revolução digital, mas ela deve ser banhada no riacho do humanismo, para que não se perca o essencial, o insondável tesouro  dos sapos, que é a imaginação. Somos felizes assim, com a nossa leitura solitária. O livro é em si, é por si, é grandioso em sua alma, e essa alma não pode ir para o ralo... Não podemos ter uma sociedade de sapos produzidos em séries, atendendo aos poderosos do mundo, que tanto desejam uma nova humanidade anfíbia, com pensamento controlado, e sem imaginação. Que delícia seria para os que se especializaram na arte da manipulação.
—Rospo, então, quando nos acusam, alguns, de puro romantismo, e até nos pedem para parar com essa bobagem de insistir na vida do livro de papel através dos séculos vindouros, é preciso que compreendam o que apenas já compreendemos antecipadamente: a necessidade do aperfeiçoamento, da lapidação da revolução digital... Aprendi desde pequena que certas tragédias podem ser evitadas. E desejo é a palavra inadequada para os tais poderosos a que se referiu, pois desejo sempre estará vinculado com a vida.
—Sapabela, ganhei a minha alvorada. Viva Martedì!
—Está bem, Rospo, sem exibições. Deixe o Italiano e diga em nosso idioma: Salve a Terça-feira!...
—Só falta uma coisa.
—Que falta?
—O licor de anis.
—Assim?, logo cedo!
—Ora, Sapabela, como a conheço bem, para você sempre é cedo.

HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 —838
Marciano Vasques

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