domingo, 13 de janeiro de 2013

ALFABETIZAÇÃO DE SI

—Sapabela!
—Rospo! Que bom que ligou! Alguma novidade, além do frio?
—Está mesmo um pouco frio. Sapabela, que tal se fôssemos...
—Eu topo!
—Que rápidez!
—Você passa em meu portão?
—Já estou indo!
—Vou só pôr um vestidinho lilás e...
—Yupiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
—Rospo! Pare com isso!, e venha logo. Esqueci de perguntar: aonde iremos?
—Esqueci de perguntar também. Mas, que tal um licor assim de anis, afinal o frio entardece inspirado...
—Pode vir, que quando chegar já estarei no portão.
****
—Rospo!
—Linda! Vamos, que o frio pede uma caminhada. A padaria Rubi deve estar repleta de luzes...
—Rospo, estive pensando: um sapinho é batizado com a palavra do mundo, e nela, ele encontra a poesia, que estará sempre piscando para ele, que se tiver as condições e as circunstâncias adequadas, poderá tê-la em si como a testemunha mais sagrada de seu batismo poético tal como sussurram as vozes do tempo...
—Por isso gosto do frio. A alma se busca e rebusca em seus próprios recursos... Prossiga.
—Depois, o sapinho cresce, e precisa colher as sementes da poesia na chuva, nas  deslizantes gotas da vidraça, no som dos grilos, nos laçarotes do luar e no chamamento das estrelas.
—Vai fundo, Sapabela!
—Eu?
—Faça-me rir.
—Pois bem, a luta será terrível e gigantesca a vida inteira, pois o que é a vida senão luta? Por isso o sapo precisa aprender a organizar o lazer. Esse será o seu aprendizado de uma vida inteira...
—Essa coisa de "Uma vida inteira" está me fazendo pensar em Manuel Bandeira...
—Esses caras estarão sempre presente, se você se descuida está roçando em Guimarães Rosa... Em Manuel Bandeira, em...
—Prossiga, minha nega...
—Como é lindo isso!, como é amoroso esse "Minha nega"!... Adoro isso, essa face da história amorosa do Brejo...
—Prossiga.
—Pois bem, a chuva, a delicadeza, a oportunidade de observar as coisas que repousam, que se perdem,  que estão ao redor, em todas as partes, e o sorriso de uma criança, o olhar da companheira, a palavra serena do amigo, a gentileza, a ternura, o giz, os corações de gizes por esses sertões afora, a poesia latente, as mais doces canções, as cantigas nas vozes suaves da infância, as amizades, em cada a amigo o trago, e o trigo a nos lembrar do campo, dos canaviais, e Roberto Piva, e Eugénio de Andrade, e tudo isso, Rospo, tudo isso...
—Sim, Sapabela?
—É a alfabetização de si.
—Alfabetização de si?
—Sim, a partir do batismo poético no riacho das águas da palavra do mundo, o sapo tem que se preparar a vida inteira para alfabetizar o mundo, fazer jorrar através de si a força generosa da poesia...
—E então?
—Então, a partir da observação e da assimilação ou da escolha do que é para si a poesia, que é o grau primeiro da liberdade, então, a partir do que é simples, e que a vida oferece com ternura, como o bolo preparado com carinho e seu aroma invadindo as ruas dos vilarejos mais distantes, e também a flor que enfeita o cabelo da menina e a amizade sincera, a partir dessas coisas, com certeza o sapo está efetuando, isto é, rasgando o seu peito e abrindo o seu coração para a alfabetização de si, que é o princípio generoso de tudo.
—Sapabela, você é uma amplitude que não posso resistir...
—Como assim?
—Além da sua presença, a presença do que através de você me ensina...
—Rospo! Chegamos!
—Viva! Sapabela, lindo seu vestidinho...
—Fico feliz que tenha gostado...
—Essas nuances verdes, uma beleza...
—Espere um pouco amigo!: nuance verdes? O que está vendo de verde sou eu. O vestidinho é lilás...
—É mesmo! Bem, chegamos, viva a padaria Rubi! Viva o licor de anis! E viva a sua conversa... Vou levá-la comigo, pois assim que tem que ser: uma conversa boa de um amigo é presente que se leva para casa.
—Rospo, obrigado por ser meu amigo.
—Yupiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
—Sem escarcéu, por favor!

ROSPO 2013 —  849

Marciano Vasques

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