sábado, 12 de janeiro de 2013

O AMIGO DAS COISAS

Rospo encontra um colega.
—Como vai, Sapoter?
—Estou pensando em comprar um carro.
—Outro?

—Você sabe, quanto mais, melhor.
—É?
—Um carro, dois, três. Garagem com carros é sinal de status...
—E como vão as coisas?
—Preciso de mais...
—Não entendi.
—Preciso de mais coisas, Rospo. Mais coisas...
—Correto. Naquela tarde em que estive em sua casa procurei um livro de poesia antigo...
—Não tinha...
—Lembro, até comentou que sua casa não era sebo. Foi uma brincadeira, claro, eu até ri.
—Mas ia falar algo legal.
—Sim, nem mais espaço tinha em sua casa, de tantas coisas... E agora, em Janeiro?
—O que tem Janeiro?
—Não jogou nada fora?
—Está louco? Quero mais é ter! Quanto mais coisas melhor. Mas tudo coisa nova, nada de coisas velhas, como livro antigo, ainda mais de poesia...
—Às vezes é bom jogar algumas coisas fora. Esse é o sentido mítico do ciclo, do renascimento, que cada nova translação simboliza... Jogar tralhas, tranqueiras, objetos em desuso...
—Mas você não é aquele que diz que devemos preservar? Até hoje guarda a sua "Praxis". Nem ao menos vendeu... E também um ferro de carvão...
—A "Praxis" não tem valor de venda, assim como o ferro. Só tem valor de venda o que pode ser apenas usado. Aquilo que se usa somente, pode ser trocado, vendido ou doado ou ainda jogado fora. Embora, naturalmente, também se vende a própria casa, que, principalmente para as crianças, sempre tem um envolvimento histórico da própria formação do pensamento e da consciência, além da memória e da alma. Mas essa é uma história mais longa...
—Mas você escrevia com a Práxis... E o ferro...
—O ferro simboliza uma sapa da geração anterior que deixou saudades, e simboliza muito mais, e a Práxis, ora, havia um apego, um simbolismo, uma ligação profunda, que se perdeu nos dias atuais. Na era da velocidade, da informatização do mundo, da terceirização do pensamento, as coisas são apenas de uso... E assim, um computador é como um carro, que é como uma mobília que é como... Claro que isso não impede que algum sapo vá ter ligação afetiva com o seu objeto... Mas o contexto geral de nossos dias é o da somatização do descartável em nossa alma...
—Não tenho nada para jogar fora, Rospo! E preciso ir, foi bom conversar.
—Talvez pelo menos da mente...
—O que disse?
—Se o excesso de objetos velhos e em desuso, em casa, que causa desarmonia no espírito, não pode ser jogado fora, então, pelo menos, que jogue os entulhos, os trastes, as intempéries, a brutalidade ou a secura dos pensamentos improdutivos ou deselegantes... Para que acumular pensamentos que nada contribuem para a alegria e a harmonia do Ser? Para quê?
—Minha cabeça está boa, Rospo. Minha mente é saudável.
—Não quis ofendê-lo, por favor.
—Rospo, além do carro, preciso comprar algumas coisas para o quarto, algumas bugigangas, alguns cabides, algumas peças para o banheiro, algumas...
—Você precisa de uma companheira, uma sapa.
—Uma sapa? Tem razão!, está aí uma coisa que eu preciso ter, uma sapa. E além dela, outras coisas...
—Amigo, desejo sinceramente que seja feliz, mas é um desejo sadio, prudente, honesto e transparente... Ou seja, um desejo consciente.
—Rospo, que papo é esse?
—Tenho plena consciência de que a felicidade é exigente, mas ela só exige o que é de fato simples...
—Diga.
—Ela exige o desapego.
—Desapego?
—Desapego dos objetos que não são mais usados, desapego do que é puramente material, sem vínculo com a alegria da alma e caiu em desuso, desapego dos entulhos, do acúmulo de coisas, de objetos, de...
—Ou seja, para ser feliz é preciso se desapegar de tudo, é preciso ser pobre...
—Entende tudo errado, meu amigo. Quando a vida se confunde com o acúmulo de objetos, essa coisificação da vida não representa riqueza, ao contrário, é a mais triste das pobrezas... É possível sim ser feliz tendo as coisas, mas as coisas são apenas as coisas... Isso nada tem a ver com o brinquedo da criança. Ele é sempre mais do que apenas um objeto, ele é a imaginação, ele é a extensão da memória,  o espírito da criança, ele é... Claro que nossa época é a do brinquedo descartável, por causa do capitalismo, da produção, mas... Mas... Uma época em que o brinquedo da infância é descartável é uma época triste...
—Por acaso nunca disse ao seu bem: Você é a coisa mais linda da minha vida?
—Meu amigo, não me venha falar da licença poética: nesse caso a coisa não é a coisa coisificada, mas é o bem que a vida nos trouxe... A namorada, o amor, a parceira, é o bem da vida, o presente, que nos presentificou, que nos ensina que viver o presente é o melhor presente que alguém pode ofertar para si mesmo... E viver a vida ao lado de seu bem, seu bem verdadeiro, isso sim é a melhor coisa da vida.
—Quer saber, Rospo? Tchau! Tenho que correr, pois se o shopping fecha, não posso comprar nada...E se não compro nada tenho insônia. E você? O que faz essa hora pelas ruas?...Sei que adora passear ao luar, mas hoje chove, chuva leve, mas é chuva...
—Vou até a padaria Rubi...
—Vai comprar o que? Pão?
—Não, querido, acredite, não irei comprar nada, e pão é pura necessidade.  Mas estou indo só para atualizar uma conversa com uma amiga...
—A tal da Sapabela?
—Isso, a tal. Um grande abraço.

HISTÓRIAS DO ROSPO 2013 — 846
Marciano Vasques

Um comentário:

  1. Meu amigo é sempre muito bom caminhar por seus escritos e sentir seu amor pelo que faz. Um Feliz e produtivo 2013 na vida e nos projetos!

    Que tal desabilitar as letrinhas de confirmação para se comentar por aqui!

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