terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

NAMORAR O LIVRO...

Manhã azul de céu varrido, e lá ia o Rospo rospeando quando encontrou a velha amiga:
—Sapabela!
—Rospo!
—Feliz de ver você.
—Meu lindo, é "Feliz por ver você".
—Feliz de ver você é diferente. É algo assim como "Feliz de Poesia", como se um sapo estivesse pleno de algo, que desencadearia uma súbita felicidade. Poderia ser uma referência, um refletor da memória. Uma característica de algo vivido ou intensificadamente desejado, então, poderia ser "Feliz de Santos"...
—Sábio o provérbio popular que diz que "Santo de Casa não faz milagres".
—Eu me referi à cidade de Santos. Mas também poderíamos dizer: "Feliz de rabanadas", "Feliz de macela"...
—Macela?
—Sim, talvez sintomatizado por uma caminhada inesquecível na infância entre anis, alecrim, beirinha de riachinho, gafanhotos saltitantes, orvalho refletindo o arco nas teias que ligam pedras, seixos lisos e úmidos...
—E buscando macela para fazer travesseiro...
—Quem sabe.
—Então hoje você está feliz de mim.
—São meus referenciais, que atuam de forma balsâmica em minha inquieta alma ... Entre eles, você. Sim, estou feliz de ver você, estou feliz de você.
—Rospo, sempre precisamos conhecer alguém de forma mais profunda...
—Gostei disso.
—Sei, sei.  Para conhecer alguém de verdade  é preciso namorar esse alguém. Não é?
—Sim. É Mia Couto quem disse?
—Não, deve ter sido a ventania, um alvoroço de necessidades conversadeiras, não sei. Mas em algum momento alguém deve ter dito isso.
—Concordo plenamente. Para conhecer alguém é preciso namorar esse alguém... 
—Da mesma forma, para conhecer um livro é preciso afagar o livro, encostá-lo ao peito, ao tórax, senti-lo, ler. Só é possível conhecer um livro verdadeiramente após lê-lo, tocá-lo. Um livro ultrapassa a si mesmo... Um livro não é camaleônico, ele se supera porque a história do leitor muda, adquire novos momentos e novos sentires, por isso o livro parece sempre se superar, pois a história do leitor mudou... Dessa forma, insisto, para se conhecer um livro é preciso namorá-lo...E namoro, bem sabe, é ritualístico. Transita da distração, do acaso, para o querer inexplicável...
—Pelo que diz, Sapabela, para sentir é preciso namorar... Sentir no conceito de conhecimento. Não dá para sentir algo desconhecido. No desconhecido só o medo tem vez... A travessia começa no namoro.
—Sim, a grande travessia do Ser... Assim é com tudo que nos é essencial. Namorar a Língua, você sabe...
—Sei, isso um moçambicano falou...
—Pois é, namorar a língua é se apaixonar pelas suas parlendas, pelas suas cantigas, pelas suas ironias,  suas figuras, suas metonímias, suas... Enfim, pelos tesouros que só ela nos traz, com sua oralidade e suas escrituras, Língua, você sabe, não aceita opressão, de nada, menos de Gramática, que é sim, sua organização da alma. Mas não alcança jamais a beleza nascida na oralidade dos vilarejos de poeira, nuvens, fumaças azuladas, orvalhos e mormaços... É a necessidade que só é possível na doçura. Gramática que prende só perde, pois as andanças da Língua são invencíveis. 
—E o livro?
—Já disse, o livro só pode ser conhecido se existir o namoro. Só o namoro leva ao conhecimento, e só o conhecimento leva ao amor. O verdadeiro amor surge triunfante no conhecimento. O desconhecimento, já mencionei, leva ao temor. Uma vez um menino perguntou  a um padre porque deveria temer em vez de apenas amar.
—Sapabela, conversar com você enriquece o meu dia, é como coar o café com palavras...
—Mas fale, querido, dessa coisa de "Estou feliz de você, de ver você"...
—É que levo você comigo. Eu a encontro na manhã, num encantro...
—Encontro, Rospo!
—Encantro, pois é mescla de encanto com encontro...
—Prossiga.
—Encantro você na manhã e a levo comigo. Entendeu? Levar você é o eixo da magia, é a semente. 
—Você me leva?
—Levo, pois vai no meu pensamento dia afora, e até quando o anoitecer descer o seu manto lá estará você e essa conversa ressonante em meu coração, em meu pensamento, em minha "necessidade"...
—Fico feliz de saber. Mas nem sei se você me leva, Rospo. Tenho a impressão de que eu o acompanho , eu vou com você, em você, pois afinal permanece em mim também.
—Com a impressão de sapa imprimo todos os ângulos da atenção e do cuidado.
—Rospo, que bom! Que alegria poder conversar com você.
—Viu como só escolho referenciais imensos?

ROSPO 2013  — 859
Marciano Vasques


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